sábado, dezembro 30, 2006

Assiduidades controladas



Não tencionava escrever sobre este assunto, mas posts como este (de médicos, ainda por cima) fizeram-me mudar de ideias. Vem isto a propósito de mais uma medida zelosa do nosso governo que, como a maior parte das que tem tomado, se destinam a desacreditar os profissionais de uma determinada classe e a ter impacto mediático - do tipo "nós vamos pôr isto na ordem" - e, como todas as outras, são suficientes para deixar as pessoas descontentes mas não para resolver o que quer que seja.

Pessoalmente, não tenho dúvidas de que sou frontalmente contra a medida de controlo da assiduidade dos médicos nos hospitais com relógios de ponto, sejam mecânicos, electrónicos ou digitais. Acho que se trata de uma medida claramente destinada a humilhar e a complicar a vida das pessoas, sem qualquer vantagem.

Com efeito, quem ganha com este controlo? Os doentes? A produtividade? Não, servem apenas para reforçar a ideia de que os médicos são uns malandros de uns privilegiados, que querem é sair tarde da cama e safar-se para a privada, deixando os pobres utentes à espera horas a fio por consultas e parasitando o dinheiro dos impostos nada fazendo nos hospitais onde lhes pagam.

É claro que há médicos pouco produtivos, atrasados e mandriões. Como em todas as profissões. Mas não será certamente por picarem o ponto que se tornarão melhores. Por outro lado, o descontentamento será generalizado, e o que é certo é que as pessoas trabalham pior se estiverem descontentes e desmotivadas, o que é o que este governo - na linha aliás dos anteriores - tem trabalhado arduamente para conseguir.

Eu não chego às 8 ao hospital, que é a minha hora oficial de entrada. Porque não é necessário. E saio muitas vezes antes da hora oficial de saída, outras vezes depois, conforme o trabalho que tenho. Em alguns serviços, a pontualidade é importante, como nos blocos operatórios, nos turnos de urgência, nos exames complementares ou consultas marcados. E nesses serviços as pessoas são geralmente pontuais, porque é necessário. Porque ao contrário da ideia que o governo gosta de propalar, e que estas medidas acentuam, os cirurgiões querem operar e não o fazem porque têm pouco tempo de bloco, as pessoas entram a horas nas urgências porque também gostam de ser rendidas a horas, e em geral os médicos gostam do que fazem e são pessoas responsáveis - o curso de Medicina, os internatos, os exames, passa-se por tudo isso porque se tem vontade, não porque é um emprego confortável onde se ganha muito dinheiro.

Ou seja, o que eu quero dizer é que o nosso trabalho não é uma tarefa burocrática com horas marcadas; quando estas existem, a organização da estrutura (hospital, centro de saúde) é o que é necessário para esses horários serem cumpridos. Quando não são, é geralmente por má organização - exames ou consultas marcados em excesso para o tempo disponível, ou para horas em que as pessoas estão obrigatoriamente a acabar outras coisas, ou má coordenação com secretariados ou resultados de exames complementares.

Mas é sempre mais fácil assumir poses de autoritarismo virtuoso e fazer leis que se sabe antecipadamente que não vão ser cumpridas. Essa é aliás uma característica muito portuguesa - a plétora de leis incumpríveis, que nos coloca a todos no papel de transgressores, dependentes do livre-arbítrio das pessoas com poder para punir as transgressões. E é tão conveniente acirrar a opinião pública contra os médicos, enquanto se corrói o Sistema Nacional de Saúde! Porque o que o governo se esquece de dizer é que está a pressionar os médicos para diminuirem os horários, e não para os aumentarem, para pagar menos. Como de resto já fez com os enfermeiros. Como se esquece de publictar as restrições orçamentais que impedem que se utilizem melhores meios, se contrate o pessoal necessário, nomeadamente para cumprir as reestruturações ordenadas pelo próprio governo, como é o caso do novo plano de urgências.

E depois vêm estes burocratas virtuosos aplaudir estas medidas! Ah, como detesto a mania portuguesa (e não só) da honestidade por decreto! Que só tem paralelo na chico-espertice portuguesa de rodear as regras e não cumprir as ditas leis.

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Diálogos de Vanguarda - a exposição de Amadeo Souza-Cardoso

Gostei imenso da excelente exposição de Amadeo Souza-Cardoso na Gulbenkian. É sem dúvida das melhores exposições que vejo em Portugal em muitos anos - uma boa quantidade de obras, com boa representação de todas as fases do pintor, bem apresentadas, e com o cuidado de as integrar no contexto de obras que o influenciaram e de trabalhos dos seus contemporâneos. Acho sempre muito interessantes estas retrospectivas de um artista - mais ainda quando se trata de alguém que eu aprecie particularmente, como é o caso, pois considero Amadeo Souza-Cardoso dos melhores pintores portugueses de sempre (juntamente com Vieira da Silva e Almada Negreiros), e pertence à época que acho culturalmente das mais interessantes de todos os tempos (o início do Modernismo, a fase revolucionária das primeiras 2 décadas do século XX). Permitem-nos acompanhar a sua evolução, testemunhar as experiências realizadas, particularmente nas várias versões com que um tema é tratado, as suas influências, etc.

O conjunto das obras expostas é soberbo, muito completo. Gosto principalmente das do ano de 1913, quando Amadeo começa a abandonar o desenho mais realista e convencional mas ainda não mergulhou no abstracto da sua última fase, quando as formas se estilizam e decompoem, como vitrais - as minhas telas favoritas são Barcos e Les Cavaliers, que me apaixonaram desde a primeira vez que as vi, já há muitos anos, por alturas da abertura do Centro de Arte Moderna.
Gostei também muito da colecção de desenhos, que não conhecia, e que inclui um magnífico D. Quixote e o moinho, e em geral das figuras de cavalos e galgos, simultaneamente elegantes, fortes e sensuais. As obras de Modigliani expostas são muito belas, sobretudo uma figura de nu em fundo azul e uma cabeça de pedra, que parece uma divindade tutelar poderosa e enigmática. As esculturas de Brancusi, os quadros de Kokoshka, as máscaras africanas, os desenhos de cavalos japoneses, ajudam a compreender a arte e as experiências de Souza-Cardoso. Ver a colecção de livros de arte do pintor lembra-nos que é recente a facilidade de acesso a reproduções fidedignas de arte; naquela época, as fotografias de quadros eram a preto e branco e pouco nítidas; que revelação e experiência fantástica devia ser então a descoberta das obras num museu! Mesmo agora, é diferente ver as obras ou as suas reproduções, mas nada que se compare a esse tempo, em que era necessário ir ao Louvre para descobrir Rubens, a Florença para Botticelli, a Paris e Nova Iorque para os impresionistas, etc... Assim se compreende o impacto que tiveram acontecimentos como as exposições pós-impressionistas em Londres organizadas por Roger Fry, ou os ballets russes de Diaghilev (aliás, também evocados nesta exposição, com os desenhos de figurinos).

O principal defeito da exposição, a meu ver, é a iluminação - pareceu-me em muitas partes mal iluminada, gostaria de ver os quadros inundados de luz e não numa penumbra algo soturna... Mas no geral acho que a exposição está muito boa, e não resisti a comprar o catálogo, que por sinal é caríssimo, mas enfim, não é todos os dias que há uma retrospectiva desta qualidade de Amadeo de Souza-Cardoso.


Nota: como é habitual, vagueando pela net a propósito deste tema, dei com este blog - http://pinturaportuguesa.blogs.sapo.pt/ - que tem uma selecção notável de obras de pintura portuguesa, como o nome indica. Vale a pena ver.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Where the Sidewalk Ends, de Otto Preminger


Vi este filme ontem à noite na Cinemateca. Um belo film noir, com Dana Andrews e Gene Tierney, escelentes. Há alguns dias, vira Fallen Angel, também de Otto Preminger, menos bom, mas razoável. Saliento que a programação da Cinemateca para Janeiro é óptima, planeio ir lá muitas vezes! Para mais informações, consultar o site www.cinemateca.pt. É bom lembrar que o cinema começou há mais de 100 anos, e que os filmes bons antigos continuam a ser bons.

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Durante a batalha de Borodino, segundo Tolstoi, ou o valor das opiniões "entendidas"



"A ordem de disposição citada aqui não era em nada pior, ou era ainda melhor, do que todas as ordens de disposição anteriores de Napoleão com que as batalhas tinham sido ganhas. As pseudo-ordens no decorrer da batalha também não eram piores do que as antigas, mas as mesmas de sempre. Mas esta ordem de disposição e outras ordens parecem piores do que as anteriores porque a batalha de Borodino foi a primeira que Napoleão não ganhou. Todas e quaisquer ordens, por mais perfeitas e inteligentes que fossem, parecem muito fracas quando com elas não foi ganha uma batalha, e cada cientista militar as critica com ar entendido; e as piores ordens parecem muito boas, levando pessoas sérias a escreverem grossos volumes a mostrar os méritos de ordens sem mérito nenhum, quando com elas foi ganha uma batalha."

Lev Tolstoi, in Guerra e Paz

Transcrevo esta passagem porque me parece uma descrição perfeita sobre as avaliações a posteriori, que é aplicável a praticamente todos os acontecimentos históricos (da História e de histórias). Aliás, Tolstoi faz observações semelhantes ao longo do livro em outras passagens. Estou a reler Guerra e Paz, que tinha lido há muitos anos, e estou a gostar imenso, muito mais do que da primeira vez. De facto, há muitos livros que são muito mais bem compreendidos e apreciados com um pouco mais de maturidade... E este merece amplamente a fama que tem. Quanto a esta passagem durante a extensa parte dedicada à batalha de Borodino (que toda ela é uma descrição excelente de como eram confusas e complicadas as batalhas nos tempos anteriores à facilidade de comunicações que hoje nos parece tão óbvia), é muito apropriada para nos fazer repensar a validade de tantas apreciações feitas com ar entendido sobre os mais variados acontecimentos...

terça-feira, dezembro 19, 2006

Modas na linguagem


As modas vêm e vão, na linguagem como nos chapéus ou no formato das calças ou no corte de cabelo. Mas há algumas tão irritantes...

Uma expressão que entrou na linguagem corrente nos últimos tempos é o irritante "Peço desculpa", em vez do "Desculpe", tão mais simples e menos servil. Acho que o acrescentar "peço" deve pretender enfatizar a expressão de arrependimento, o que torna a frase ridícula, uma vez que na esmagadora maioria dos casos em que é utilizada aplica-se a prosaicas situações do género de pisar o pé num ajuntamento ou de passar à frente numa porta. Ou será uma tentativa de reproduzir em Português a expressão tão british "I beg your pardon"? Acho que não resulta!

Mas a pior de todas é mesmo aquela que se tornou quase universal nos últimos anos: "há xx tempo atrás", porque ainda por cima é gramaticalmente incorrecta. O correcto é "há xx tempo" ou então "xx tempo atrás". Mas o "há xx tempo atrás" alastrou dos locutores de televisão (esse terrível meio de difusão de disparates linguísticos) às novelas portuguesas (idem), aos políticos, aos colunistas nos jornais... Quando, há uns tempos, ouvi o meu próprio pai, habitualmente de linguagem correcta e austera, a utilizá-la pensei: "Pronto! Já não há remédio!".

Também as modas de linguagem gestual surgem sem se saber como e difundem-se imperceptivelmente. Quem raio terá inventado aquele actualmente ubíquo gesto com os 2º e 3º dedos das mãos a significar "entre aspas"?

Pois, bem sei que isto são frivolidades; e então? Não se vive só a pensar nos romancistas russos nem no problema do aborto!

domingo, dezembro 17, 2006

Um passeio a Fronteira


Sempre gostei imenso do Alentejo no Outono, sobretudo num dia de sol. As cores - castanhos e verdes, com o azul ocasional das ribeiras e o branco das casas -, a luz, as oliveiras e os sobreiros espalhados. Que boa forma de passar um sábado outonal, percorrendo as estradas do Alentejo em boa companhia, ouvindo música e conversando! E por fim realizando o objectivo do passeio, e descobrindo um delicioso sucessor para o meu saudoso companheiro de tantos anos. Há dias bons.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Estranhos, de Simon Brand


Unknown é um bom thriller, na linha de filmes como The Usual Suspects ou Memento - argumento engenhoso, ambiente de film noir muito bem criado, interpretações sóbrias e sólidas. Greg Kinnear como sempre muito bom, twists credíveis qb. É bom constatar que se continuam a fazer bons filmes negros.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Entre Inimigos, de Martin Scorsese


The Departed é um dos melhores filmes de Martin Scorsese, pelo menos dos últimos 20 anos. Violento, desenrola-se como uma tragédia grega moderna até ao final. O argumento é excelente, as personagens construídas com verosimilhança e suportadas por actores no seu melhor - Jack Nicholson parece melhorar com a idade, Matt Damon, Mark Wahlberg e Martin Sheen óptimos, até Leonardo DiCaprio, com cujas interpretações habitualmente não empatizo grandemente, está convincente - é sem dúvida o seu melhor papel. É bom ver Scorsese voltar em grande forma, depois dos últimos anos, de que apenas vi Gangs of New York e me fez adormecer... Já desanimava, desde The Age of Innocence, que ele voltasse a fazer algo de valor. Mas voltou, e ainda bem.

A Queda, de Oliver Hirshbiegel


Der Untergang é um filme impressionante, não só por si próprio - o tom sóbrio e o ambiente sombrio, as excelentes interpretações - mas sobretudo pelo que evoca, como todas as obras de qualidade que tratam o tema do nazismo. Impõe-se sempre a pergunta: como foi possível? Mas foi, aconteceu. É fundamental nunca ser esquecido, e filmes como este contribuem para isso da melhor forma, apelando à nossa consciência e às nossas emoções.

Não sei se tudo o que aparece é factualmente correcto, já vi referido que há inexactidões, como a falta de disciplina dos guardas durante a vida de Hitler ou as festas no bunker. Mas não custa a acreditar, naquele ambiente surrealista, com o ditador desesperado comandando exércitos inexistentes, Himmler preocupando-se com a melhor maneira de cumprimentar Eisenhower ou Magda Goebbels dirigindo o coro celestial dos seus 6 filhos que já decidira matar para não viverem num mundo sem nacional-socialismo.

Bruno Ganz está excepcional como Hitler, destacando-se num elenco todo ele magnífico.

terça-feira, novembro 28, 2006

The Castle of Otranto, de Horace Walpole


The Castle of Otranto desiludiu-me, esperava melhor daquele que é considerado o primeiro romance gótico, de 1764. Parece-me um dos casos em que um livro fez época mas fica irremediavelmente datado - ao contrário, por exemplo, dos romances góticos de Ann Radclyffe, como O Italiano ou The Mysteries of Udolpho, que ainda hoje se lêem com agrado e conseguem manter um clima de mistério e suspense digno do que foram os antepassados dos romances de mistério / policiais (ou como, décadas depois, o excelente A Mulher de Branco, de Wilkie Collins). Uma das diferenças dos livros de Ann Radclyffe, por exemplo, é que nestes nunca há recurso ao sobrenatural, os mistérios aparentemente inexplicáveis têm sempre uma explicação terrena mais ou menos engenhosa; em Otranto, a utilização do sobrenatural parece-me sinal de falta de imaginação e acaba por ser moralista e empobrecedora.

Mas enfim, é um livro de referência, um marco, e tem a virtude de ser pequeno e nada maçador. A título de curiosidade, Horace Walpole também lançou a moda do revivalismo neogótico na arquitectura com o seu castelo no campo e inventou a palavra serendipity. E mais uma vez louvo a iniciativa do projecto gutenberg (www.gutenberg.org) que nos permite aceder a obras fora de circulação ou difíceis de encontrar.

segunda-feira, novembro 27, 2006

A propósito de Lytton Strachey - The New Biography, de Michael Holroyd


A primeira vez que ouvi falar de Lytton Strachey foi nos Diários de Virginia Woolf. Aliás, foi através destes Diários que se desenvolveram o meu interesse e admiração pelo Grupo de Bloomsbury.
Lembro-me vagamente de ler Virginia Woolf pela primeira vez por volta dos 18 anos, Mrs.Dalloway, de ter gostado mas sem me impressionar especialmente (gostei muito mais quando o reli, anos mais tarde). Só mais tarde, com Rumo ao Farol, seguidos de Orlando, O Quarto de Jacob e As Ondas, e dos Diários, é que me tornei um fervoroso adepto da escrita de Virginia Woolf e, através dela, de Bloomsbury. Por essa altura já conhecia também os romances de E.M. Forster, a que chegara pelos filmes de James Ivory dos finais dos anos 80, e que nem sabia ser conhecido de Virginia Woolf. Mas, ao contrário de Lytton Strachey, Morgan Forster nunca foi uma personagem fulcral do grupo. Ao longo do tempo, os nomes e as vidas de pessoas como Virginia e Leonard Woolf, Vanessa Bell, Duncan Grant, Roger Fry, Lytton Strachey, Clive Bell, Maynard Keynes (de quem ouvira falar nos livros de História), Ralph Partridge e outros foram-se-me tornando familiares, quase como amigos ou velhos conhecidos.
O Bloomsbury Group esteve alternadamente na moda e fora de moda ao longo das décadas, foi meticulosamente escalpelizado (a começar pelos seus próprios elementos) e abundantemente criticado – as críticas mais frequentemente apontadas aos bloomsberries ou bloomsburyites, como são chamados, são as de serem pretensiosos, pedantes, maldizentes, mentirosos ao ponto da mitomania, auto-complacentes, narcisistas, superficiais, frívolos, e em geral inconsequentes.
Certamente, cada um deles tinha muitos defeitos, eram provavelmente vaidosos e algo arrogantes, seguramente mexeriqueiros (como disse Gore Vidal algures, they turned gossip into a form of art), e o valor artístico do que fizeram foi muito variável. Mas para mim, representam uma época que me fascina e que admiro imensamente – o começo do século XX, o aparecimento da modernidade, a ruptura com os valores tradicionais dos séculos anteriores que permitiu o nosso mundo contemporâneo de ideias e valores modernos (não consigo encontrar palavra melhor), no sentido de liberdade de espírito, de independência e tolerância.

Uma passagem do livro de Holroyd (episódio que já lera na biografia de Virginia Woolf de Quentin Bell): “Lytton ‘released Vanessa from guilt and the need to conform’, wrote her biographer Frances Spalding. Her sister Virginia recorded a famous incident the following year when, entering the drawing room at Gordon Square, Lytton pointed his finger at a stain on Vanessa’s dress and inquired ‘Semen?’ Could one really say it, they wondered, ‘& we burst out laughing’. Only those getting to know Lytton well in those days when freedom of mind and expression were almost unknown, Vanessa wrote, ‘can understand what an exciting world of explorations of thought and feeling he seemed to reveal.’”

Os bloomsburyites fizeram parte da geração que criou o mundo moderno – intelectual e moralmente aventureiros, irreverentes, tolerantes, pacifistas, curiosos. Aquilo que na época era tomado como decadência de costumes porque tão aberrantemente diferente da norma estabelecida e que hoje parecem frivolidades para atrair as atenções porque são comportamentos que actualmente já não espantam ninguém, exigiu na altura muita coragem moral. E de certa forma, a intrincada rede de relações de amizades e solidariedades entre eles contribuiu para que tivessem a coragem e a segurança para viver segundo as suas ideias – é de todos os tempos a tendência de grupos com comportamentos / ideias pouco convencionais encontrarem segurança num código de conduta / atitudes partilhadas, que facilmente parecem aos outros tolices arrogantes.

Quanto a Lytton Strachey, era provavelmente muito irritante, teatral, e aquilo que hoje chamaríamos “muito bicha”. Mas escrevia admiravelmente bem, e defendia as suas ideias com uma ironia aparentemente suave mas arrasadora – o seu Eminent Victorians é demolidor, desmascarando completamente os valores vitorianos em toda a sua hipocrisia e influência perniciosa sobre a liberdade de espírito, e no entanto sempre no tom mais perfeitamente culto e educado que se possa imaginar. Aliás, ouvira falar muito deste livro antes de o ler, e já conhecia então a vida de Lytton Strachey em linhas gerais, e fiquei surpreendido em como é bom – imensamente actual (porque a hipocrisia e o tartufismo são eternos, e não exclusivos dos vitorianos – e como tendem por natureza a tomar conta dos moeurs!) e delicioso de ler. E a vida de Lytton, a sua longa relação com Carrington, é mais um exemplo de como as relações e os amores podem ser diferentes, estranhos só na aparência, mas essencialmente individuais, no sentido em que cada um é um caso, precioso para quem está envolvido, e podendo evoluir das mais variadas formas, até onde cada um se deixar ir.

A biografia de Michael Holroyd é minuciosa e compreensiva, e mostra um imenso afecto e admiração pelos seus sujeitos. Lê-se como um romance, interessante, divertido e dramático. Há anos, vi o filme Carrington, de Christopher Hampton, que é baseado neste livro – penso que no geral é uma boa adaptação, com um ambiente bem recriado e personagens bem conseguidas, nomeadamente a Carrington de Emma Thompson e o Lytton de Jonathan Pryce.

Continuo pois um fan de Bloomsbury – próxima incursão, a correspondência entre Virginia Woolf e Vita Sackville-West!

sábado, novembro 25, 2006

A Prairie Home Companion, de Robert Altman


Vi há dias A Prairie Home Companion, por coincidência no dia da morte de Robert Altman. E é de certa forma um filme apropriado para fazer perto da morte – todo repassado de um afecto nostálgico, de uma sensação mista de melancolia, de amor à vida e de gosto pelo que se viveu, ou seja, o tom de uma elegia de quem ama a vida e sente que esta está a terminar. A construção do filme é semelhante à de outros filmes de Altman – numerosas personagens apanhadas num momento crucial, interpretadas por um excelente naipe de actores, histórias cruzadas, diálogos sobrepostos, uma morte pelo meio. Os números musicais estão magníficos, com uma série de jingles hilariantes e Garrison Keillor (o intérprete do animador do programa, que também é o autor do argumento, das letras e da maioria das músicas) actua como uma espécie de fio condutor – penso que ele é na vida real semelhante à personagem, e deve ter sido a inspiração da ideia do filme. Meryl Streep, Lily Tomlin, Woody Harrelson e John C. Reilly estão óptimos como habitualmente, gostei menos da interpretação de Kevin Kline. A personagem de Virginia Madsen lembra um pouco uma personagem semelhante de Jessica Lange num outro filme-prenúncio-de-morte, All That Jazz.

Short Cuts continua a ser o meu filme favorito de Robert Altman, que encontrou então em Raymond Carver o contador de histórias perfeito para o seu tipo de filmes. Mas A Prairie Home Companion é também muito bom, muito melhor que Gosford Park, que achei um bocado falhado.

domingo, novembro 19, 2006

Os Arautos do Paintball, ou o marketing modernizado


Há dias, o meu Abdallah apareceu em casa todo entusiasmado (o que não é raro, pois ele é um optimista incurável) com uma notícia da escola (o que já é mais raro, dado que é um gazeteiro rufião): “Foram lá umas pessoas, e vou inscrever-me no karate e poder fazer paintball de graça!!” Abriu a sempre caótica mochila, e num restolhar de papéis amarrotados, cordéis, tampas de garrafas, paus e outras utilidades várias, lá sacou de uns prospectos: “Só tens de preencher a autorização e a inscrição, é aos fins-de-semana e é grátis!” (Não é que eu seja assim tão avarento, mas como um dos argumentos que eu geralmente lhe avanço quando lhe recuso actividades como karting, paintball, laserfight ou outras de que se lembra é o preço, suponho que ele achava que enfatizando bem o grátis era meio caminho andado para me convencer.)

Sempre céptico quanto às grandes facilidades que o meu Abdallah calvinescamente me apresenta, deu uma vista de olhos pelos prospetos, onde se destacavam belas fotos de miúdos em actividades “radicais” várias; depois vi os cabeçalhos: Arautos do Evangelho, e um logotipo ao canto com um desenho em que figurava, salvo erro, uma Nossa Senhora de Fátima e as chaves de S.Pedro. “Pois, pensei, cá está a explicação de tanta facilidade”. A minha resposta foi curta: “Arautos do Evangelho? Nem pensar. São coisas religiosas, não vês?” E apontei-lhe os símbolos e o pequeno texto explicativo sobre o que eram os Arautos do Evangelho (que ele obviamente não lera); ele ainda insistiu (“Mas não temos de lhes dar dinheiro”, “Mas é paintball!”) mas com pouca convicção, porque ele sabe bem que as minhas posições anti-religião são inabaláveis – foi-lhe incutido desde o berço, ao fim e ao cabo era ele que aos 3 anos apontava para as fotografias do Papa João Paulo II no jornal e dizia que era “um homem muito mau”.

Nunca tinha ouvido falar dos Arautos do Evangelho, mas não é nova esta forma da Igreja tentar aliciar os miúdos para as suas fileiras – suponho que a oferta do paintball grátis nos anos 00 é equivalente à táctica, que hoje nos parece ingénua, de pôr jovens no coro da missa a tocar guitarra e a cantar músicas do Bob Dylan e do Simon & Garfunkel com letras piedosas nos anos 70-80.

OK, a Igreja é livre de utilizar as técnicas de marketing que desejar, e só resulta com quem quiser. O que me irrita é a escola, pública e laica, permitir que o seu espaço e o tempo lectivo sejam utilizados para essa propaganda. Tal como me irritou quando, na primária, ele me apareceu um dia com os impressos para a inscrição na catequese, “para fomentar a boa relação entre a escola e a paróquia”. Sou acérrimo defensor da laicidade da escola pública e da sua separação de qualquer confissão religiosa. E acho muito pior esta utilização da escola pela Igreja para fazer propaganda do que o uso do véu islâmico por alunas (ou, já agora, de crucifixos ou turbantes sikh ou ankhs ou cornos diabólicos). Porque se um aluno acha que esses símbolos fazem parte da sua identidade e são importantes para ele, não acho que daí venha mal ao mundo se os usar, é a sua atitude pessoal, que é tão importante para os outros como usar T-shirt encarnada ou uma corrente no cinto. Por isso sempre achei estéril e contra-producente (porque exacerba as convicções de quem quer usar esses símbolos, porque passam a sentir-se perseguidos, e algo que na maior parte dos casos era um simples adereço cultural passa a assumir uma importância muito maior) esse tipo de proibições. Mas sou frontalmente contra a escola pública, como instituição ser utilizada para difundir proselitismos / propagandas religiosos. Sim, e isso inclui os crucifixos na parede, que não têm o mesmo significado que usados ao pescoço de estudantes.

quinta-feira, novembro 16, 2006

8 1/2, de Federico Fellini


Vi finalmente 8 1/2, de Fellini, que é tão bom como dizem. Um caleidoscópio de cenas magníficas numa bela fotografia a preto e branco, Marcello Mastroianni e Anouk Aimée execelentes. Há muitas referências freudianas, a banda sonora e a sequência de cenas evocando o universo do circo (lembrando um pouco La Strada, mas não triste como este, antes repassado de um optimismo e gosto pela vida entusiasmantes). Até agora, o meu filme favorito de Fellini era La Dolce Vita, mas este não lhe fica nada atrás.

terça-feira, novembro 14, 2006

The Hamlet, de William Faulkner


The Hamlet é o primeiro livro do ciclo de Yoknapatawpha centrado nos Snopes, que aparecem em vários outros livros da série. Os Snopes são os perfeitos representantes do white trash - como ervas daninhas, aparecem e multiplicam-se, tenazes, rasteiros, sonsos, cruéis, quase todos incapazes de passar da miséria, exceptuando o matreiro Flem, que vai devorando implacavelmente o que o rodeia. Como sempre, o livro está excelentemente escrito, faz-nos sentir o universo cruel, estranho e fascinante do Sul de Faulkner, bem mais real e impressionante que as versões cinemascope de Gone With the Wind ou televisivas de North and South.

domingo, novembro 12, 2006

Little Miss Sunshine, de Jonathan Dayton e Valerie Faris


Gostei muito deste filme, talvez o melhor road movie que vejo desde Thelma and Louise. Muito engraçado - muitas vezes hilariante -, inteligente, sensível e afectuoso, sobre a busca da felicidade e de objectivos numa época de confusão e de falta de perspectivas, e os valores a que nos podemos segurar. Sem lamechices nem condescendências, com uma boa dose de humor. As personagens estão bem construídas e as interpretações são excelentes, sobretudo as de Greg Kinnear e Toni Collette. A cena do concurso é arrasadora.

(Não tem nada a ver com o filme, mas as cenas do arranque da carrinha em 3ª fizeram-me lembrar uma viagem que fiz há muitos anos. Planeáramos - a minha namorada, eu e um casal de amigos - uma viagem pelo norte de Espanha. Na véspera da partida, o carro avariou-se: não se conseguia reduzir de 3ª para 2ª. Com a alegre irresponsabilidade da juventude, e já que não havia dinheiro para alugueres de automóveis, partimos na mesma, pensando que se podia perfeitamente conduzir em 3ª. De facto, assim foi, mesmo pelas estradas dos Picos de Europa, onde nos íamos espetando contra um autocarro de turistas ao sairmos de uma curva, a subir, em contra-mão... Mas como diz o ditado, audaces fortuna juvat, e não houve consequências.)

quarta-feira, novembro 08, 2006

Star Wars - a exposição


Fui ver ao Museu da Electricidade a exposição Star Wars. É interessante, embora um bocada cara - 10 euros por pessoa, só não pagam as crianças até aos 7 anos. Além de múltiplos objectos usados nas filmagens - roupas, uniformes, cadeiras, os robots R2D2 e 3CPO, o podracer de Annakin, um caça Naboo, modelos de naves, etc -, tem desenhos de projectos, pequenos documentários sobre a utilização das peças expostas, cenas do filme em que estas aparecem, e um documentário muito bom sobre as filmagens. Enfim, é engraçado para quem conheça bem a série, e uma alegria para as crianças fãs - desde a presença de guardas do Império devidamente uniformizados aos jogos de X-box - como o meu Abdallah, que lá se passeou todo contente armado com a sua espada de laser. Vale também a pena rever o Museu da Electricidade, que é um edifício soberbo, interessante pelo conteúdo e esteticamente belíssimo - um excelente exemplo de recuperação de um edifício industrial, que é raro entre nós.

segunda-feira, novembro 06, 2006

Ainda sobre o Sistema Nacional de Saúde


Este pots já vai um bocado atrasado, mas não queria deixar de assinalar a reportagem da Visão sobre onde os nossos políticos se tratam quando estão doentes. Sem excepção, todos disseram que recorrem ao serviço público quando têm alguma coisa de grave, utilizando o privado para processos minor, como check ups e consultas. Penso que é útil contrastar com a reportagem da semana anterior, sobre onde punham os filhos a estudar, em que a maior parte optava pelo ensino privado. Não é isto dos melhores indicadores da qualidade dos serviços públicos de saúde? Acho que deviam reflectir nisto antes de desmantelarem o Sistema Nacional de Saúde... É que deviam lembrar-se de que as alternativas são muito pouco seguras, e a saúde é um assunto muito sério.

Memórias


Last night I dreamed I was in Manderlay again...

voz de Joan Fontaine na abertura de Rebecca


Fez-me pensar nisto um post que li recentemente num blog, que era uma evocação idílica de cenas de infância. Porque ao ler sobre aquelas cenas de uma infância que também foi a minha, revi as minhas próprias recordações das mesmas, e de outras, e pensei que se eu escrevesse daquela forma terna e nostálgica, de alguma forma sentiria a minha voz soar ligeiremente a falso. Não que não guarde boas recordações da infância, nomeadamente daquelas cenas em casa dos meus avós. Mas não consigo evocá-las sem de imediato lembrar outras partes, aquilo que falta na descrição - os conflitos, as infelicidades, as tempestades permanentes, mesmo aquelas de que só me fui apercebendo mais tarde, mas que ficaram irrevogavelmente inseridas no conjunto. E quando hoje revejo a minha infância, não sou capaz de evocar aquela idílica Arcádia habitualmente associada a essa época das nossas vidas, mas um período longo e algo acidentado em que a sensação dominante que recordo era a de me sentir incompleto. O mundo que me rodeava, nomeadamente e sobretudo (porque constituiam a maior parte dele) as relações familiares, parecia-me opressivo e algo que eu desejava superar; queria crescer e as incertezas do futuro, ou provavelmente da minha capacidade para construir esse futuro, assustavam-me.

Toda a memória é uma reconstrução mental e por isso suponho que temperada pelo nosso carácter e pelo nosso perfil emocional. Talvez por eu ser depressivo / ansioso não consiga evocar o passado da mesma forma romântica e idealizada que outras pessoas. Mas a verdade é que não consegui evitar, ao ler esse post, uma sensação algo condescendente de como tudo aquilo me parecia... simplório (haverá talvez outra palavra melhor para exprimir a ideia. Parochial?) Em todo o caso, acho que não foi mau que Manderlay tenha ardido.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Cadernos de Guerra, de Jean-Paul Sartre

Não sei por que acaso, mas tive este livro durante anos sem o ler, e só agora, depois de reler as memórias de Simone de Beauvoir e de ler as cartas de Beauvoir a Sartre e a Algren e As Palavras é que finalmente o li. Gostei muito - embora haja algumas partes um pouco maçadoras, como aquelas em que ele se alonga sobre conceitos filosóficos, a sua auto-análise e as reflexões sobre a guerra (ou melhor, o estar em guerra durante a espera que foi a drôle de guerre, antes do ataque alemão à Bélgica, Holanda e França), são muito interessantes. O estar em guerra mas não fazer guerra lembrou-me um outro retrato dessa mesma situação que vi recentemente no filme Jarhead - como pessoas de culturas diferentes reagem de forma diferente a situações que se repetem ao longo dos tempos. Mas sobretudo gosto sempre da forma como Sartre (e Beauvoir) procuravam compreender-se, a si próprios e ao mundo em que viviam, mesmo que muitas vezes não concorde com as suas opiniões. Próximo livro de Sartre a ler: as cartas ao Castor!

quarta-feira, outubro 18, 2006

The Undercover Economist, de Tim Harford

É o segundo livro sobre Economia para leigos que leio em poucos tempo (depois de Freakonomics). Gostei bastante mais deste - mais bem escrito, mais abrangente; sem ser aborrecido, parte de situações concretas do quotidiano para explicar os mecanismos gerais da Economia. Há uma defesa acérrima e entusiástica do mercado livre, por vezes ideias com que não concordo, mas no geral é muito claro e útil para entender melhor o mundo em que vivemos, o que é sempre bom.

domingo, outubro 15, 2006

Um Sol pálido e frio....



Li há dias numa carta de um leitor do Público uma definição do novo semanário Sol que achei perfeita: "um misto do Expresso com o 24 Horas e o Tal & Qual"... De facto, é isso mesmo - artigos curtos e superficiais, um visual péssimo, umas brejeirices para aligeirar (ainda mais...) e piscar o olho ao tuga, mais uns nomes sonantes para encher o olho - os manos Portas, cujo principal interesse deve ser o de serem manos e de partidos opostos, o Professor Marcelo, que devia ser amordaçado durante pelo menos um ano para ver se recupera a inteligência gasta em tantas opiniões, etc.

Não, ainda não é desta que temos um semanário de jeito, mas de resto outra coisa não seria de esperar do grande escritor Saraiva, que já presidira à imparável deterioração do Expresso.

sábado, outubro 14, 2006

Taxas moderadoras? - ou para onde vamos?


Discordo totalmente das chamadas "taxas moderadoras" para os internamentos, que não passam de mais um subterfúgio para poupar (e extorquir...) uns cêntimos, e são mais uma machadada no conceito do Serviço Nacional de Saúde que, ao contrário do que as pessoas adoram dizer, é dos serviços públicos que melhor funciona em Portugal.

Para já, a ideia de "taxa moderadora" aplicada a um internamento é ridícula. As taxas moderadoras surgiram nas Urgências hospitalares com o objectivo de moderar, precisamente, a afluência de falsas-urgências, pois as pessoas sabiam que eram mais rapidamente e mais bem atendidas do que se fossem esperar para os Centros de Saúde (na Urgência, além de serem vistas por médicos muitas vezes mais diferenciados, despachavam logo os exames complementares e saíam medicadas). Era vulgar, por exemplo, quando eu fazia bancos no Hospital de S.José, aparecerem pessoas às 3 da manhã com motivos como falta de vista, constipações, insónias ou mesmo pedindo clisteres, e acrescentando com um ar matreiro: "Já sei que a esta hora me despacho num instante!". Depois, o conceito foi alargado a consultas e exames complementares. Mas por muito que se "elastifique" o conceito, é impossível "moderar" os internamentos taxando os doentes, tendo em conta que não são eles que decidem se são internados nem quando têm alta. E o detalhe de "a partir dos 14 dias de internamento passa a ser considerada doença muito grave e não pagam" então, é o máximo. Suponho que por esta lógica um enfarte, cujo tempo de internamento raramente excede uma semana, ou uma cirurgia oncológica, não são muito graves.

Mas o que acho mais grave é a continuação do ataque insidioso ao Serviço Nacional de Saúde, à sombra da muito propalada ideia de que "é inviável", de que "o Estado não pode suportar os gastos". Eu acho que pode, e que deve. É para isso que existe o Estado, que existem os impostos, para nos garantir algumas necessidades básicas, como a Saúde e a Segurança. E por mais voltas que dêm ao assunto, trata-se no fim de contas de uma questão de prioridades. Claro que é preciso gerir bem o dinheiro, para evitar desperdícios, que existem. Mas a solução não é acabar com o sistema, que funciona. Qual é a alternativa? Um sistema de saúde privado, assegurado pelos seguros? Para isso é que não há dinheiro, como se vê aliás nos Estados Unidos - excelentes cuidados de saúde para quem é rico e pode pagar os prémios principescos das seguradoras, e uma miséria para os restantes. Li há pouco num livro uma proposta de um sistema alternativo - uma conta-poupança obrigatória (em vez dos descontos para a saúde) que seria gerida pelo própsio, e um seguro para as "despesas-catástrofe", aquelas que seriam demasiado grandes e que esgotariam a conta de imediato (aliás, para as quais a conta não chegaria). Só que vejo aí dois problemas: primeiro, a esmagadora maioria das pessoas não tem capacidade técnica nem hipótese de obter a informação necessária a fazer as suas escolhas no âmbito dos cuidados de saúde (ao contrário do que dizem os optimistas, não basta procurar na internet, e isso assumindo que toda a gente tem internet), segundo, o conceito de "despesas-catástrofe" é muito ambíguo, e com os preços actuais dos cuidados de saúde não seria muito difícil ultrapassar qualquer conta-poupança razoável.

Portanto, gostaria muito que não dessem cabo do nosso sistema de Saúde, que com todos os defeitos que tem ainda é dos bons serviços públicos que temos. E que não digam que não é viável - o sistema no Canadá é público, e funciona muito melhor do que o dos Estados Unidos. E sobretudo, detesto ouvir a retórica economicista que pretende justificar opções políticas com motivos técnicos.

domingo, outubro 08, 2006

Duas Exposições

Enquanto estive em Nova Iorque, vi duas excelentes exposições:



No Limits, Just Edges: Jackson Pollock Paintings on Paper - Há muito tempo que Jackson Pollock é o meu pintor americano favorito, penso que desde a minha primeira ida aos Estados Unidos e a descoberta das suas telas "ao vivo". Por pouco perdi esta exposição (vi-a no último dia), o que teria sido uma pena. Além de vários desenhos magníficos, mostra a evolução do pintor ao longo de 25 anos, o que é sempre extremamente interessante, sobretudo quando, como no caso, se dá a passagem do figurativo ao abstracto. (Lembro-me de ver há uns anos uma exposição de Mondrian no CCB que também abarcava esta evolução, e que me fez apreciá-lo mais.)

Como brinde, tive a exposição que estava na rampa espiral, que não me teria atraído só por si mas que foi uma agradável descoberta: o trabalho do atelier de arquitectura de Zaha Hadid, que eu não conhecia, com maquetas e fotografias espectaculares, e admiravelmente exposto, em que o interesse pela obra vai crescendo à medida em que se avança pela espiral. E o edifício de Frank Lloyd Wright é sempre um prazer de redescobrir.



Cézanne to Picasso: Ambroise Vollard, Patron of the Avant-Garde - Esta vi-a por acaso; reparámos nos cartazes ao passar em frente do Metropolitan e uma amiga (que aprecia mais os impressionistas que os expressionistas abstractos e que estava um tanto céptica quanto à de Pollock - depois rendeu-se, devo dizer em seu abono!) teve vontade de ver e entrámos. Foi uma sorte, porque a exposição é excelente. Muitas obras dos melhores pintores dos fins do século XIX e princípios do XX passaram pelas mãos de Vollard, e a exposição apresentava uma colecção notável, sobretudo de Cézanne, Gauguin e Picasso, com alguns quadros muito bons de Renoir, Degas e outros. Os retratos de Vollard deixam-nos verdes de inveja - que sorte ser retratado daquela forma por aqueles pintores! Sobretudo os de Cézanne e Picasso, que são soberbos. Gostei também especialmente dos livrinhos de poemas de Verlaine ilustrados por Rouault. E claro, aproveitei para rever as galerias de impressionistas e de Rodin do Metropolitan, que são talvez as melhores do mundo, mesmo incluindo o Musée d'Orsay.

quinta-feira, outubro 05, 2006

New York



Alguns dias em Nova Iorque - um "banho" de ciência, cultura, gastronomia, passeio e compras. Fisicamente cansativo, mas mental e emocionalmente relaxante. Nova Iorque é sempre divertido e estimulante, a cidade por excelência, em que se se pode fazer tudo e encontrar de tudo a praticamente qualquer hora, aquilo que, juntamente com o anonimato e o cosmopolitismo, representa para mim a verdadeira civilização urbana. Soube-me bem andar quilómetros, quer pelas avenidas quer pela Greenwich Village (a minha zona favorita de Manhattan), servir de cicerone a uma amiga que ia lá pela primeira vez, revisitar museus (fui pela primeira vez ao American Museum of Natural History, de que gostei imenso, e visitei o MoMA renovado), perder-me nas salas da labiríntica Barnes & Noble, ouvir blues ao vivo num bar da Village, comer em restaurantes de diferentes nacionalidades cada dia. Se facto, sair da rotina é das melhores actividades da vida.

terça-feira, outubro 03, 2006

Leisure



What is this life if, full of care,
We have no time to stand and stare?

No time to stand beneath the boughs
And stare as long as sheep or cows.

No time to see, when woods we pass,
Where squirrels hide their nuts in grass.

No time to see, in broad daylight,
Streams full of stars, like skies at night.

No time to turn at Beauty’s glance,
And watch her feet, how they can dance.

No time to wait till her mouth can
Enrich that smile her eyes began.

A poor life this if, full of care,
We have no time to stand and stare.


W.H. Davies

segunda-feira, outubro 02, 2006

Cria Cuervos



Como é mesmo aquele provérbio espanhol?

Cria corvos, e eles depois quando crescem arrancam-te os olhos

segunda-feira, setembro 18, 2006

Gore Vidal - A Biography, de Fred Kaplan

Terminei recentemente de ler a extensa (800 páginas em paperback...) biografia de Gore Vidal por Fred Kaplan. Tratando-se de uma personalidade que admiro bastante, e tendo já lido a memória de 1995 Palimpsest, tinha algumas reservas, mas também muita curiosidade. No final, fiquei satisfeito - globalmente, penso que a biografia de Kaplan lhe faz justiça, suficientemente detalhada sem se tornar maçadoramente exaustiva e bastante equilibrada na descrição - sem julgamentos morais - das suas capacidades, defeitos e qualidades (utilizar o termo "virtudes" aplicado a Gore Vidal parecer-me-ia absurdo!). Fiquei com pena que acabe em 1999 (à data da publicação), já que depois disso houve o caso do diálogo com Timothy McVeigh, que não acompanhei na altura e sobre o qual gostava de me esclarecer; de resto, vou lendo algumas entrevistas de Vidal e acompanhei pelos media a morte de Howard Austen, a venda de La Rondinaia e a mudança para Los Angeles.

Já falei de Gore Vidal a propósito de Washington DC e de The Golden Age. O primeiro livro dele que li foi Juliano, penso que em 1990, e lembro-me de gostar, embora não me impressionasse especialmente. Depois li alguns dos romances do que veio a ser o ciclo Narratives of the Empire, que achei sempre muito interessantes, e li o hilariante Myra Breckinridge (e a sua continuação Myron) alguns anos depois; passei aos ensaios e a Palimpsest, e foi então que me rendi a Vidal, que actualmente aprecio mais como ensaísta que como romancista - eu e muitos outros, o que aparentemente desagrada ao próprio Gore. Continuo a apreciar Gore Vidal, e a admirar o seu espírito arguto e humor sarcástico, e a coragem que teve em abordar certos assuntos nos seus escritos e expor opiniões abertamente quando essa prática ainda estava longe de ser inócua para quem a realizava, e pela coerência e independência com que sempre se recusou a ser rotulado ou "engavetado", assumindo-se antes de tudo como um escritor e um intelectual, e não um escritor isto ou um activista aquilo. Por tudo isso, mesmo que actualmente, com mais de 80 anos e fisicamente incapacitado, se repita um tanto nas suas declarações, continua a merecer amplamente o nosso respeito e admiração - de certa forma, é graças a pessoas como ele que se foi vencendo a intolerância, mesmo que muito continue por fazer.

domingo, setembro 17, 2006

Kind of in a sentimental mood...


Good times for a change
see, the luck I've had
can make a good man
turn bad

So please please please
let me, let me, let me
let me get what I want
this time

Haven't had a dream in a long time
see, the life I've had
can make a good man bad

So for once in my life
let me get what I want
Lord knows it would be the first time
Lord knows it would be the first time


The Smiths - Please, Please, Please Let Get What I Want

sábado, setembro 16, 2006

A propósito de Prime, de Ben Younger

O filme Prime (Terapia de Amor em Português) é uma comediazinha romântica, bem disposta, que vale sobretudo pelas actrizes - Meryl Streep excelente e Uma Thurman belíssima - e por alguns momentos hilariantes. No entanto, o assunto - a relação de uma mulher de 37 anos com um rapaz de 23, focada nos problemas da diferença de idades - fez-me pensar num caso análogo, passado com uma amiga minha. Aos 30 e poucos anos, iniciou um caso com um rapaz de 20 e poucos; além das suas próprias dúvidas sobre o futuro de uma relação com uma tão grande diferença de idades, questões como filhos, compatibilidades de amigos, envelhecimento dela antes do dele, etc, enfrentou muitas críticas de pessoas que a rodeavam. Mas - tal como no filme - ele fazia-a imensamente feliz (e vice-versa), e estava a viver a relação que de longe a satisfizera mais até ao momento. E, ao contrário das previsões de tantos "urubus" - e ao contrário do desenlace do filme - passados quase 10 anos eles continuam juntos e felizes. E mesmo que um dia se desentendam e separem, quantas relações resultam em 10 anos de felicidade? Falo nisto apenas para salientar que as coisas nem sempre são tão lineares como se pensa à primeira vista, e porque - talvez influenciado por este caso da vida real dos meus amigos - tive pena que o filme optasse pelo final convencional - o episódio com a mulher mais velha como um rito de passagem no crescimento do jovem macho, encarado com simpatia mas claramente como uma etapa passageira.

sexta-feira, setembro 15, 2006

Between the Woods and the Water, de Patrick Leigh Fermor

Como acho que já disse mais do que uma vez a propósito de outros livros, gosto muito de ler relatos de viagens. Sobretudo quando são tão deliciosamente suculentos como os de Patrick Leigh Fermor - terminei há dias Between the Woods and the Water, a continuação de A Time of Gifts, que li há uns anos.

Já não me lembro bem de quando ouvi falar de P. Leigh Fermor pela primeira vez, talvez na biografia de Bruce Chatwin, de quem foi amigo e de alguma forma um dos mentores. Depois, lembro-me de várias vezes ver A Time of Gifts no catálogo da editora Folio, onde durante alguns anos encomendei livros, e por fim comprei-o, numa época em que li vários volumes de memórias / viagens. Gostei imenso, e a continuação não lhe fica atrás. Espero bem que Leigh Fermor consiga publicar em breve a terceira e última parte! (Pois ele ainda vive, com 91 anos.)

Estes dois livros são o relato (escrito muitos anos depois e ainda inacabado) de uma viagem feita pelo autor na sua juventude - em 1933, uma espécie de enfant terrible da upper middle class inglesa, aventurou-se no projecto de viajar a pé até Constantinopla, atravessando a Europa ao longo dos eixos dos rios Reno e Danúbio), munido de um saco-cama emprestado por outro viajante famoso (Robert Byron, o autor de The Road to Oxiana) e uma bagagem reduzida ao mínimo, como uma espécie de vagabundo educado. A viagem durou quase dois anos, ao longo de uma Europa num momento particularmente significativo - pouco antes da 2ª Guerra Mundial, que iria transformar radicalmente toda a zona percorrida, que por isso mesmo ganha contornos simultaneamente nostálgicos e fantásticos, pois é de um outro mundo, entretanto desaparecido, que se fala. E a descrição de Patrick Leigh Fermor é fascinante - enriquecida pelos anos entretanto passados, em que PLF, um autodidacta inesgotavelmente curioso, acumulou conhecimentos enciclopédicos sobre tudo, desde botânica e zoologia a antropologia e etnologia (não admira que fosse uma das inspirações de Chatwin!), mas sobretudo a História europeia, o que torna o livro repleto de detalhes curiosos e interessantes áo longo de toda a narrativa. Por outro lado, o humor e optimismo da juventude (tinha 18 anos) tornam-se contagiantes.

O livro termina num tom nostálgico e inesperadamente melancólico, numa nota em que o autor informa que a zona onde se passa a parte final já não existe, submersa pela construção de uma gigantesca barragem no Danúbio pelas socialistas Roménia / Bulgária / Jugoslávia, assim destruindo uma paisagem fulcral na história da Europa desde o tempo dos Romanos. Não é uma diatribe sentenciosa contra o progresso, antes uma reflexão sobre a saudade e a nostalgia por um passado desaparecido.

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"Mas conheceu realmente uma pessoa chamada Quioáqui?"

em A Ruína do Anjo, de Yukio Mishima


Às vezes, uma frase, uma percepção, faz-me sentir inesperadamente atormentado por esta dúvida... Será que tudo foi real, que existiu mesmo? Às vezes, o enfraquecer da memória angustia-me.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Coldplay


Acho que os Coldplay têm melhorado notavelmente ao longo do tempo. Lembro-me de ouvir há uns anos Yellow e Trouble, e de as achar umas músicas bonitas mas um tanto xaroposas, de acordo aliás com o visual do grupo, uns rapazes muito imberbes e deslavados. Mais tarde, já apreciei mais In My Place e outras músicas desse álbum. Finalmente, com X&Y, acho que atingiram a maturidade e fizeram um grande disco - forte, belo, lírico sem ser piegas (só não gosto do início de Fix You, em que o falsetto de Chris Martin está um pouco excessivo). E é engraçado como a imagem da banda também melhorou, até estão mais bonitos, com um ar mais adulto. Não me impressiona especialmente a sua faceta "benemérita", e são terrivelmente clean, mas também acho que não é preciso ser infeliz e torturado para fazer e ainda bem que os rapazes são felizes e bem intencionados (e além de tudo, Chris Martin tem a sorte de ser casado com a bela Gwyneth Paltrow). A beleza da sua música é mais apolínea que dionisíaca, do género de nos fazer sentir bem, o que é necessário à vida, e é sempre bom conseguir esse tipo de beleza sem ser piroso nem sentimental no mau sentido. Concluindo: acho que o exemplar de X&Y que ofereci há meses à minha filha passará uns tempos largos na minha secretária.